2.06.2007

A Bandeira do Japão

Havia algum tempo kika estava decidida. Já se considerava preparada para todas as mudanças, e o simples fato de não ter acontecido era apenas uma bobagem, um esquecimento que ela guardava de todos . Como quando seu pai fazia as compras de natal antecipadas e os embrulhos só poderiam ser abertos no dia 25 de dezembro. Estava lá, era dela e ninguém poderia tirar. Sabia que alguma hora ia ser 25 para ela também. Para muitas amigas já havia sido, pensava.

Ainda tinha saudade de como era antes de se decidir. Das gargalhadas que faziam os seus dois olhos amendoados se apertarem e parecerem pequenos para uma boca tão grande. Deixava a cama revirada, as roupas pelo avesso e tudo o que não tinha importância espalhado por prateleiras e gavetas que vomitavam toda espécie de objetos. Algumas noites dormia em meio a uma confusão tão grande que ao acordar a mãe de kika ia verificar se não tinha mais ninguém no seu quarto. Gostava de deixar as amigas escreverem versinhos de gosto duvidoso ou colocar algum garrancho parecido com algo na porta de seu quarto.

Nas páginas finais que escreveu no bloco de anotações que fazia de diário, kika narrava a última conversa que teve com seus amigos e se dizia bastante ansiosa. Pedia desculpas a todos, dizia que nunca ia esquecer de cada um deles, lembrava das risadas ,das confusões, das brigas com a mãe, dos apuros e dizia que precisava fazer isso. Dizia que esperava que entendessem. No fim desta frase havia um borrão incompreensível e algumas letras que embranqueciam na fragilidade do papel molhado. Demorou ainda algum tempo para dormir neste dia , mas estranhamente nenhum barulho vindo do seu quarto atiçou o sono dos seus pais.

No dia seguinte acordou cedo, preparou um sanduíche de forma desajeitada deixando a manteiga escorrer muito além da borda do pão. Com uma rápida lambida sugou a gordura que brilhava na ponta da mesa e limpou as mãos na barra azul da saia franzida. Esperou impaciente o velho ônibus da escola sentada na escada de casa olhando para o vento que balançava a copa das árvores e se livrando do cabelo que teimava em lhe roubar a visão. Ficou aborrecida um bocado com isso. Quando o Ônibus colorido apontou no começo da esquina abriu um sorriso debochado , mas se zangou com o motorista, um senhor de bigodes já ralos, por tê-la feito esperar muito tempo.

Da janela Sônia mal podia acreditar no que via. Ainda sonolenta, descabelada e com a maquiagem por fazer contava ao marido por telefone que sua filha fizera tudo sozinha e que se preocupava com essa súbita mudança de comportamento de kika. – Você não deve encanar com isso, é coisa da idade, vai ver tá querendo copiar alguma amiguinha. Eu tenho que ir, fica mais próxima dela, a noite a gente conversa...-, Mas você não entende foram as palavras finais de sua mulher, e ao desligar o telefone sônia se aprontou com uma ansiedade um pouco incomum dentro do seu cotidiano regrado. Achava kika uma menina esquisita. Achava sim ,- não parece filha minha- dizia relutante para si mesma, mas tinha vergonha de compartilhar essas coisa com os outros. Talvez tivesse vergonha de admitir que vasculhava o quarto da filha para saber o que se passava com ela, e que lia todas as páginas de seu bloco de anotações guardado dentro de uma gaveta numa pasta que trazia um adesivo da hello kitty envergonhado como se dissesse – Você não vai fazer isso. Não houve uma vez que Sônia não tivesse feito. Inclusive naquele 13 de abril.

Na escola kika parecia um pouco diferente, permanecia quieta durante as aulas e não sorriu nem quando o professor de matemática, um gordo que balançava a barriga quando se enfezava ao ouvir uma resposta errada de um aluno foi motivo de chacota para um bando de guris incontroláveis. Na hora do recreio, se sentou um pouco afastada das amigas e ficava observando como os garotos da série seguinte pareciam crscidos, observando como as meninas mais velhas andavam , falavam, e se vestiam. Algumas garotas da quarta-série chegaram a olhar meio esquisitas para kika, mas ela não ligava. Havia no seu rosto uma certeza e uma seriedade que chamava mesmo atenção. Era a primeira vez que nenhum garoto da turma 31 havia puxado as chuquinhas que despencavam do alto da sua cabeça. Com os cabelos soltos kika seguia sem ser importunada e os corredores do colégio católico que estudava também ficaram um pouco mais silenciosos com isso.

Quando chegou em casa e explicou a mãe que não queria mais que a espiasse saltar do ônibus pela janela, Sônia ficou perplexa. Logo se livrou do abraço mais apertado que sua mãe já lhe tinha dado para dizer que ia estudar no quarto. Sônia mal teve tempo de perguntar sobre o que havia acontecido em seu quarto. Ao abrir a porta, kika foi conferir se os 4 grandes sacos azuis de lixo ainda repousavam ao lado do armário. Conferiu um por um até perceber que o último deles estava praticamente vazio e o seu conteúdo parcialmente devolvido ao lugar de origem em seu quarto, como se alguém que estivesse pondo tudo no lugar acabasse subitamente desistindo. Sônia, de ouvidos grudados na porta, ouviu apenas um – Não quero mais isso- no que kika tratou de colocar tudo embolado de volta no saco. Se despediu novamente de cada um de seus amigos de pelúcia, das suas bonecas e acreditou dar o nó mais apertado que podia ao fechar os sacos pela boca. Depois correu até a porta e disse para a mãe- Não ouça mais detrás da porta. Aquilo tudo do saco não quero mais. To esperando ficar velha, agora tchau!

No fim de semana Sônia pediu desculpas e trouxe ingressos para o parque de diversões que kika adorava. A menina mal tocou nos bilhetes e disse a mãe que não estava interessada. Que ia se fechar no quarto e ficar esperando. Sônia ainda tentou conversar uma porção de vezes mas kika não dizia mais do que duas palavras aborrecidas. Ficava se lembrando de uma conversa que tinha tido com daniela, uma menina loirinha da quarta-série. Nela, disse que queria saber o que fazer para ficar mais velha. Disse que havia decidido ser mais velha e que não tinha volta. Daniela achava aquilo tudo engraçado. Chegou a dizer para kika que isso era besteira, mas no fim entregou.. – Olha, só tem um jeito, você tem que menstruar. Eu já fiz, e agora tenho até peito. E mostrou o sutien de bordas trançadas com um orgulho que fez kika corar. Mas como é que eu faço isso , perguntou a caçula. Bom, acho que vai ter que esperar mesmo, não sei outro jeito. Kika soltou um suspiro e emendou – Mas não é possível deve haver alguma maneira, me diz. As duas já estavam atrasadas para aula e daniela completou – você vai ter que ficar mais velha.

Dali em diante resolvera, ia ficar velha, não tinha discussão. Pintou a parede do quarto de branco, livrou a porta dos antigos garranchos, trocou as roupas de cama, abandonou o velho bloco de notas, passou a fazer as coisas sozinha e não mais pediu para sua mãe escovar os seus cabelos sentada na cadeira da sala vendo televisão. Nem lembrava mais dos brinquedos e dos nomes que tinha dado aos bichos de pelúcia que colecionava espalhados por todos os cantos. De dentro do seu armário surgia um grande espelho, daqueles de corpo inteiro, e ao lado fotos de roupas legais, cortes de cabelo e a moda que lia nas revistas. Passou o terceiro ano inteiro de um modo estranho como se estivesse se preparando para alguma coisa, como alguém desencaixado, desencarnado. Falava como as amigas mas era como se não falasse de verdade, morava em sua casa mas era pouco notada, habitava o silêncio que a circulava e apenas se preparava para quando acontecesse. Mal podia esperar. Tinha um semblante mais contido e até um certo orgulho que escapava nos lados dos olhos.

Durante os últimos meses do ano kika discutia as coisas com a sua mãe encarando-a nos olhos dizendo e falando de forma tranqüila. Pressionou tanto até que sônia finalmente concordou em transformar o cabelo negro de kika numa cascata dourada, ainda que apenas nas pontas. Já era o suficiente para a menina que dizia tudo numa calma impressionante. Havia pedido também a mãe que pudesse botar um piercing na orelha, no que sônia foi irremediavelmente contra. Deixa eu virar velha , dizia para si mesma. No mês de dezembro a turma de kika ia viajar para uma colônia de férias e passar duas semanas num hotel fazenda. Era um programa que sempre agradava a menina. Kika olhou um bocado de tempo para sua mãe, que já esperançosa escutou um – não, isso estragaria os planos.

As inúmeras revistas teenagers, as fotos e as roupas que tinha comprado recentemente foram as únicas testemunhas de uma espera silenciosa. Kika mal falava com as amigas no telefone e já não almoçava com a família na sala nos fins de semana, Achava que todo o tempo tinha que ser gasto desejando o que mais queria. Queria ficar mais velha. No fundo não sabia bem o porque , ou achava que ficando isso ia explicar muita coisa e que então ia ver que estava certa e que ia ser recompensada. Assistia a tv vendo os programas que mostravam uma vida que ansiava em deixar brotar, tudo era mais iluminado e mais brilhante na sua cabeça. Era assim que pensava- minha vida vai ser um comercial, divertia-se chupando um pirulito de morango, único hábito que não abandonara por completo.

Quando janeiro do ano seguinte veio kika passava as tardes dos seus dias enfurnada nos lençóis de motivos florais que tinha pedido a mãe, assistindo televisão sem realmente prestar atenção. Passava a maior parte do tempo triste e aborrecida. Não falava com ninguém. Tinha emagrecido um pouco e sua mãe ficou seriamente preocupada. Um psicólogo a visitava toda semana e kika concordou em recebe-lo já que sabemos que eles não são muito de falar. Dr. Ruiz dizia que precisava de um certo tempo para perceber o que acontecia com a menina , para uma sônia cada vez mais aflita. Nos meses que se seguiram a coisa passou a funcionar. Da maneira que kika queria, quer dizer. O dr propunha uma série de brincadeiras que a menina recusava decidamente e ficava obrsevando a impassividade da garota. Que nada tinha a ver com falta de energia ele prontamente explicava a sua mãe. Era com se ela se recusasse a fazer as coisas por uma escolha dela própria, como se não concordasse com o que acontecia, dizia ruiz um tanto animado com a prórpia percepção. Sônia quase chegou a demitir o psicólogo quando este disse que não acreditava se tratar de um problema grave. Isso para ela era quase como chamá-la de burra na sua cara.

No dia 4 de março, um dia após o retorno das aulas, Sônia que já não acordava kika para ir a escola acordou atrasada e foi trabalhar equilibrando uma pasta cheia de papéis que ficara organizando na cansativa noite anterior. Exatamente ao meio-dia kika levantou bastante cansada, e daí em diante seguiu uma série de horas até que finalmente soltou o lençol branco de suas mãos. Deu um grito como nunca havia saído de sua boca, correu ao banheiro e passou um bom tempo se olhando de todos os ângulos que conseguia descobrir. Depois pegou o grande lençol branco com as mãos trêmulas e pendurou em cima de sua cama como quem finca uma bandeira em território conquistado. Sentia-se diferente, com um contentamento que transbordava de todas as suas partes. Quem olhasse para ela gritando e pulando em cima de sua cama encontraria expressão tão ou mais inocente da que tinha no começo do ano anterior. Já sem fôlego sentou na sua cama sem saber bem o que fazer. Sentiu-se sozinha pela primeira vez em muito tempo. Pegou o telefone e ficou longamente explicando que havia mudado de idéia e que a amiga precisava entender. Que se preciso fosse ia chamar o seu pai para ajudá-la. Sua amiga acabou concordando meio contrariada. E no fim do dia kika surgiu pela porta da frente com o rosto encoberto pelos gigantes sacos de lixo, que ia trazendo desengonçada um por um . Estava com uma felicidade radiante e fez a única coisa que podia fazer, colocou-os de volta nos lugares de origem um por um e contou a todos eles a coisa maravilhosa que tinha acabado de lhe acontecer.