8.03.2006

novas diretrizes em tempos de paz

Todos os dias às 4 da manhã, Oliveira de andrade acorda engasgado, se vira da esquerda para a direita, quase sem mover a fronha e sem atingir a sua mulher que dorme um sono sossegado. Respira embargado, toma o lenço azul com listras pela mão suada e fala algo que não chega a sair de sua boca. Pensa estar atrasado para o trabalho. Tenta uma respiração profunda que aprendeu no curso de yoga. Toma um copo dágua até a metade e deita. Demora mais uns quinze minutos até que se acalme o suficiente para que os olhos cansados vençam a queda de braço com o seu coração que palpita, como um soldado convocado a guerra.
Desperta ainda umas outras 4 vezes antes de chegar a hora certa. Em cada uma delas o esforço é o mesmo. Sempre toma o mesmo cuidado em não acordar a mulher, não ter nenhuma atitude estranha ou indigna de um pai de família, e não perder o horário.

Não bastasse isto dorme por vezes com a roupa do trabalho para ganhar tempo nos preparativos e não correr o risco de ficar no trânsito. Já cortou qualquer tipo de alimentação matinal que não venha pronta. Nada de descascar laranjas ou algo batido no liquidificador. Até o costumeiro pão na chapa foi trocado por uma caixa de suco pronto e, um pedaço de bolo ana maria que esconde da mulher e dos filhos no armário acima do refrigerador. Sábio, Oliveira se vangloria do prestígio que adquiriu em 21 anos de profissão sem nunca chegar atrasado, tirar férias itegrais, ou mais de 2 dias por doença.

Era assim desde criança. Essa obsessividade messiânica frente as obrigações sempre foi um traço que o distinguia entre os demais. Carregava inúmeras alcunhas por conta disso. Caxias, digno, honrado, trabalhador, orgulho da família. Mesmo quando os moleques da rua sacaneavam, não dava bola. Sabia que levando uma vida com retidão, seria recompensado. Não dizia , mas na sua figura pálida e empoada, nos seus 1,90 encovados em apenas 60 kilos, na longa franja negra, escondia um prazer secreto, um gozo solitário. Sabia mais que qualquer outro que a sua hora ia chegar. Que os moleques iam ver. Que ele estava certo.

Realmente era difícil discordar. Tinha conseguido um emprego de respeito. Uma mulher de quem não se podia falar muito- nem pro bem ou pro mal- e filhos que mesmo puxando assimm por dizer a "beleza" do pai, tinham um cheiro de criança saudável. Assim como dizia pro seu cunhado - "César, é sim , sáude tem cheiro , tem cor, tem quase registro social. E meus filhos vão muito bem sim". Dava uma vida confortável para a mulher. Que se por um lado não tinha uma vida aventuresca- não , oliveira não era o Indiana Jones, nem o gastão, já que segurava o dinheiro liberando o mínimo para uma vida justa, como dizia- não tinha sobressaltos, dívidas, cobradores, nem apertos financeiros.

Pai e marido aplicado. nota 7,5. Oito com esforço. Não tinha rompantes que o levassem a ser um modelo dos dois.Não era a sua. Era um sujeito comedido. Talvez a sua melhor qualidade. Nunca ficaria em prova final ou de nota vermelha. Assim era no trabalho. Firme. Cumpria sempre o que falava, embora não falasse tanto. Sua previsibilidade era um trunfo. Todos sabiam que oliveira não deixaria ninguém na mão. Todos o conheciam , suas manias e sua ansiedade. Uma vez, convocado às pressas para uma reunião da cúpula diretora da empresa que trabalhava, tropeçou nas escadas e rolou uns 10 degraus até ser socorrido por um segurança. Com muita dificuldade chegou até a sala principal como se nada tivesse acontecido, mãos e testa em bicas, camisa amassada, sem enxeragar um palmo diante dele e com uma das mãos no bolso para que ninguém visse o corte provocado pela lente dos óculos. Ao ser perguntado sobre a sua respiração ofegante dizia ser a última técnica de hatha Yoga para controle da energia vital. Oliveira também sabia mentir, mas só para salvar a sua reputação. Essa reputação de quem tem tudo sobre controle. Quem atravessa o tempo com uma ampulheta nas mãos faz tudo o que tem para fazer, volta e os grãos de areia mal começaram a cair.

Quase no mesmo instante que recebera uma boa promoção no serviço lá no vigésimo terceiro ano. Oliveira Faltou ao serviço sem maiores explicações. Sua ausência foi notada meio ao acaso. Seu chefe queria apresentá-lo a um amigo. Queria mostrá-lo mais como caricatura que era , do que como profissioal competente. Ansiava pelo gaguejo que ora vinha e o jeito meio apreensivo e atordoado de Oliveira para talvez deixá-lo embaraçado na frente do amigo. Em casa ninguém sabia o que se passava. Como de costume leu, tomou um copo de suco pronto e um pedaço de bolo anamaria , pegou o jornal e saiu apressado para o trabalho. Mal tinha feito barulho nas escadas ao descer do quarto. Sua mulher sabia que tinha dormido em casa pelo gel seboso que ficava no travesseiro quando se deitava. Seus filhos ficaram apreensivos quando chegou a noite e o pai não tinha voltado com um pacote de balas para cada um. Uma apreensão muda, amarrada. Sua mulher sem entender o que acontecera dizia que seu marido sabia o que fazer. Que voltaria a qualquer momento. Que sempre fora ele a pessoa a tomar decisões, e que não seria diferente. O marido sabia o que fazia.

Só que os bolos ana-maria e as caixas de suco guardadas no refrigerador foram se acumulando. Sua mulher continuava comprando da mesma maneira de sempre, na sua rotina fria e muda. Seu sofrimento calado era compartilhado pelo seu marido onde quer que tivesse. Tudo na sua casa continuava aparentemente como se nada tivesse acontecido. Mesmo uma semana depois de seu sumiço Iolanda continuava sem procurar o marido. Certa de que ele é que entraria em contao e sabia o que estava fazendo. Cuidava apenas para deixar tudo do jeito que estava quando saiu. Para que satisfizesse aos seus padrões de exigência.

Assim continuou por mais um tempo até que Iolanda começou a ficar preguiçosa o suficiente para seguir sua rotina diária de não fazer nada que mudasse algo. Vivia a maior parte do tempo na cama. E, se permitia dormir no lado do marido e com o seu travesseiro ensebado de gel, que ela mesma cuidava para que continuasse espalhado.

Por isso, quando 1 mês depois a casa foi posta a venda toda a vizinhança se espantou. Iolanda saiu com os filhos sem dizer nada sobre o assunto ou para onde ia. Simplesmente vendeu a casa com tudo o que tinha e desapareceu. O noticiário da televisão avisaria que um homem desaparecido havia 1 mês tinha sido encontrado. Ou o seu corpo. Que havia sido jogado no rio e , estava quase irreconhecivel. Apenas os peritos do IML forma capazes de identificar que se tratava de Oliveira. Tratava-se de um engano. Aparentemente confundiram Olievira com alguém jurado de morte. Seu corpo havia recebido mais de 30 balas e jogado amarrado no fundo do rio da cidade. Devia ter feito algo de bem sério , foi o que o Sargento Ferreira falou a rede local de televisão.

No enterro do corpo no jazigo local estava muita gente conhecida e alguns curiosos. Sua mulher tinha voltado com os filhos e alguns amigos do colégio apresentavam sincera admiração. Oliveira deveria estar pensando.....quem está certo agora?.... Companheiros do trabalho também se reuniam em torno da lápide. Nela estava escrito - a morte não muda nada que em vida não foi possível.

Todos seguiram suas vidas. Iolanda arrumara um ameprego, afinal, precisava cuidar dos filhos e, a pensão do marido só sairia depois de esclarecido os motivos do assassinato. Os seus filhos estavam mais bronzeados por conta da casa de praia que sua mulher tinha ido morar, com a irmã. Os companheiros de trabalho de Oliveira já comemoravam os excelentes resultados de uma fusão bem sucedida da empresa. E, os amigos do colégio não tocavam mais no nome do falecido pois nunca se fala mal de um morto.

Tudo agora continuava como se nunca tivesse sido. Cada qual arrumado , arranjado. De alguma forma. Nada que mudasse a órbita solar ou a direção das estrelas. Embora Oliveira ainda fosse uma lembrança sempre presente na vida de todos. Mas era isso , lembrança. E, vôcê sabe..., lembrança a gente é que escolhe, faz dela o que quiser. O que equivalia dizer que agora teríamos não somente um Oliveira , mas muitos. Um para cada um. Um conforme cada um. Mesmo que não fosse um diamente ou tivesse várias faces.

Alguns anos depois do acontecido a polícia ainda não tinha esclarecido o que acontecera no assassinato. O chefe da delegacia local recebia uma série de correspondências de pessoas que diziam ter pisatas sobre a morte. Inúmeras vezes um suspeito foi anunciado na impressa. Iolanda foi convocada algumas vezes para testemunha e averiguar, mas desistiu assim que percebeu que não estava dando em nada. Entre as diversas correspondências de gente oportunista chegavam cartas de alguém que se intitulava Oscar. Eram cartões-postais de diferentes lugares turísticos com umas pequenas frases. Vinham sempre uma vez por mês. Religiosamente como um comportamento metódico. No dia primeiro de cada mês chegavam. um após o outro. Eram apenas algumas palavras lacônicas. No fim, já no rodapé, havia um muito obrigado por tudo. E a frase - a morte não muda nada que em vida não foi possível.

7 Comentários:

Às 3/8/06 16:58 , Anonymous Anônimo disse...

Essa última frase machucou heim...
Que texto foi esse?
VOOOOCÊ que fez? Hmmm...as mil faces de Rodrigo Oliveira.
Gostei muito!
Tanto.
Beijosss!

 
Às 3/8/06 17:12 , Anonymous Anônimo disse...

Ouch!
Vou te dizer que esse texto me pegou desprevenida...
Pegou de jeito.
Bom, mto bom.
Ótimo.

=***

 
Às 4/8/06 13:54 , Anonymous Anônimo disse...

fantástico!!!, me prendeu deste a primeira frase!!!, adorei "saúde tem cheiro"!!! me diga...quando que sai o livro??? vou querer dedicatória!!!
muito booooommmmmmmmmm, suspense o tempo inteiro cara muito bom mesmo!!!
mauro

 
Às 4/8/06 18:25 , Anonymous Anônimo disse...

Olha só, muito bom seu texto! Tem talento o rapaz!!
Beijo

 
Às 6/8/06 00:00 , Anonymous Anônimo disse...

Juvenal Juvenal... vem me dar um beijo...são 6hs da manhã.Juvenal Juvenal...Juvenal Juvenal..

Juvenal

 
Às 6/8/06 22:59 , Anonymous Anônimo disse...

Oi Rodrigo, adorei o texto. Muito bacana poder ler suas histórias depois de tanto tempo, tempo saudosos... tenho um carinho enorme pelo anos de Canarinhos e vc faz parte dele. Beijos grande, Stefania

 
Às 19/2/09 11:23 , Blogger Nelio Souto disse...

Texto maravilhoso. Parabéns! Simples, mas muito profundo. Me lembra Nelson Rodrigues.

 

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