9.18.2006

Recomeço

Quase depois da meia-noite eu me escondo. Mas não dá muito certo. Me pego exergando o meu braço vacilante. As vezes um grito sai da minha boca. Cruza o céu deixando um rastro de poeira. E, eu observo de longe. Preso a terra. As minhas pegadas não me denunciam. Não é por aí que me encontram. O rastro que eu deixo não completa uma página de história em quadrinhos. Mas há algo ali que escorre. Tem alguma coisa que liga todo o resto a mim. As vezes sou um conjugado de pequenos pontos que seguem ao infinito. Para saber o meu real tamanho voçê vai ter que sair ligando todos estes pontos. Como no jogo infantil. No meio de tudo eu vou estar lá. E não vai ter nada que voçê possa reconhecer. Porque eu guardei a melhor parte para alguém que esta chegando. Aos poucos. Sou só rabisco ainda. Por isso preciso tanto de voçê.

9.05.2006

Longe de Casa

Logo que o último deles foi embora, ainda fazendo algum barulho engraçado, caminhou devagar até a porta dos fundos e empurrou sem pressa. O trinco prateado correu até o fim, e girou a chave umas três vezes antes do último clique. Andou alguns passos da cozinha até a sala e, novamente a cozinha. Não sabia o que fazer. Quando o telefone tocou no quarto ao lado soluçou umas três vezes antes de correr pelas esquinas vazias do apartamento. Segurou o fone nas mãos muito tempo após ele se calar. Na tentativa de sufoca-lo. Olhou de relance o espelho oval em cima do criado, puxou com raiva a barba até a ponta rala e sentiu-se tolo. Queria ficar sozinho. Pensar um pouco.

Deu uma boa olhada em tudo o que havia no apartamento. Não levou muito tempo. Separou quatro pastas cheia de envelopes. Em alguns deles escreveu algo com uma letra um pouco tremida , mas legível. E colocou debaixo de um piso falso de tacos no canto da sala. Retirou uma a uma, as dezenas de fotografias que coloriam o apartamento. Puxou os fios do telefone para se certificar que não ia ser interrompido.

Mesmo aos tropeções carregou até a sala os enormes sacos de lixo que guardava embaixo da cama. Encheu cada um deles com toda a sorte de quinquilharias que pode encontrar pela frente. Cobriu alguns móveis com lençóis velhos que não usava mais, e finalmente apertou com o dedo indicador ainda um pouco sujo o botão do toca discos. Abriu o bar com uma chave que quase já não servia, trazendo a garrafa de whisky mais antiga que pode encontrar. Os dedos foram rolando levemente algum objeto imaginário no ar e pareceu abraçar-se a alguma coisa. No meio disso, as velhas ferramentas que tinha guardadas na despensa ainda podiam ser úteis. O aparelho de som, nesse dia, tocou o cd, no mais alto volume, até a última faixa sem cessar.

Nos três dias que se passaram a primeira coisa que dava para observar era o estado do lugar. Havia um cheiro muito ruim. De carniça. As paredes estavam desenhadas por linhas de um vermelho espesso. Que ora terminavam , mas que recomeçavam em algum outro ponto da casa. Parecia que um exército havia se enfrentado naquele lugar. Dava pra dizer isso pelo estado geral, mas os objetos estranhamente pareciam no lugar. Exceto pelos três enormes sacos de lixo que pousavam absurdamente no centro da sala, umas garaffas de whisky vazias e poucas ferramentas de marcenaria.

Somente quando o primeiro bombeiro caiu desajeitadamente por sobre um dos sacos, é que os outros puderam ver do que se tratava. Metade de um corpo caído amparava uma das torres, espremido pelo sofá de couro que devia ser branco. Um dos vizinhos de porta passou mal e, acharam melhor chamar a polícia imediatamente. Antes disso, puderam ver que cada um dos sacos guardava uma parte do corpo do velho, algum membro quase dilacerado. Perplexo, um dos bombeiros mal conseguiu segurar um dos sacos na mão. Mas puxou do meio dos objetos amontoados um envelope com a inscrição luis. Não havia nada dentro. Nas pilhas seguintes ainda acharam os nomes Ana e Nina.

As investigações continuaram com o inquérito dos filhos. Luis foi o primeiro a depor. Havia voltado dos eua onde morava com a esposa e trabalhava em uma firma de computação. Apresentou-se decidido, e logo se aprontou em dizer o que tinha acontecido. Obviamente tratava-se de um assalto seguido de um assassinato com requintes de crueldade. Muito simples. Afirmava, com gestos resolvidos, que os assaltantes juntaram vários objetos em sacos grandes , mas que foram surpreendidos por algum barulho e resolveram fugir com o que já tinham . Os nomes deviam ser de cartas antigas escritas pelo pai que foram parar ao acaso misturadas aos outros objetos. As marcas na parede eram fruto da luta de seu pai com os bandidos. E quanto as amputações, não se dizia surpreso em um país como esse. Não sabia dizer se o pai tinha inimigos. Não conhecia seus hábitos recentes ou sua rotina. Apenas, que o velho era cheio de manias. Gostava de fazer as coisas por métodos. Mas disse que estavam bastante afastados. Antes de sair apressado disse que o pai era ranzinza mas um bom sujeito. Ana e Nina deram depoimentos sucintos e não acrescentaram muito. Estavam as duas muito abaladas. Haviam brigado com o pai há pouco tempo e não se perdoavam.

Vinte dias foi o tempo que levou desde o aparecimento dos primeiros suspeitos até a confirmação. Joselino dos Santos e mais dois homens assaltaram e feriram o morador do apartamento 202 de um prédio de classe média da Urca. Foi a palavra que usaram. Nenhum dos três assumia a barbárie. Naquela noite, Foi levado algum dinheiro, aparelhos eletrônicos, um revolver sem balas e algumas jóias. Insatisfeito, José Dantas, o delegado de polícia agiu da única maneira que ia de acordo com o que sentia. Não sabia mais o que fazer quando o réu deixou a sala de depoimentos cambaleando e caiu no chão. Joselino não chegaria a ser preso. Não resistiu a seguidas pancadas em sua cabeça, ainda no trajeto ao miguel couto. Assustados, os parceiros de joselino passaram a dizer todo o tipo de coisa aos policiais por medo. Mesmo que suas histórias nunca batessem.

Os advogados dos filhos se ocupavam do inventário dos bens. Cada filho através do seu representante dava a sua visão de como devia ser a divisão. Como o testamento não era tão claro e não pareciam dispostos a ceder, era trabalho para, no mínimo, meses. Luis, Ana e Nina mal chegaram a se encontrar após os primeiros depoimentos. Os moradores do edifício Algarves levaram tempo para esquecer o que tinha se passado. O único que, por assim dizer, seguiu no caso, foi o delegado Dantas. O modo bruto como tratara Joselino escondia uma impotência que não podia suportar. Sabia que havia algo errado ali. Alguma coisa enterrada sob o monte de objetos que escorriam dos sacos, as garrafas de whisky e as ferramentas de marcenaria.

Quarenta e cinco dias depois do ocorrido , os moradores do Algarves voltaram a escutar vozes vindas do apartamento 202. Uma gritaria interrompeu o trabalho minucioso no apartamento. Dantas e uma pequena equipe formada por ele, com as mãos sujas de terra e poeira analisavam uma série de papéis. Olívia, ex tabelião e atual procurador da polícia atestava, a princípio, a validade dos documentos. Neles, o velho Arnaldo José Batista, 65 anos, militar na reserva, deixava 4 testamentos diferentes. Um para cada um dos filhos. O último, com quase tudo o que possuía, para ajudar o hospital dos servidores do exército. No testamento dos filhos haviam ainda cartas escritas com uma letra débil e cheias de sangue ao que parecia.

O que tinha escrito, Dantas só soube depois , na presença dos próprios filhos. Em cada um dos rascunhos quase ilegíveis,Arnaldo deixava uma parte de si para os seus filhos. Dizia com uma clareza e simplicidade inacreditáveis. Pedia que os filhos conservassem os restos da carne do pai próximos a eles. Dava ainda dicas de como conservar os tecidos, absolvia os seus assaltantes , e falava que não podia esperar para começar esta nova vida, agora ao lado dos filhos.