8.17.2006

Bibi.

Bianca era uma criança como as outras. Fazia o que as outras crianças faziam. Tinha sempre as mesmas reclamações e pirraças infantis tão próprias da idade. Como todas as outras amigas aos 11 anos. Sua mãe arrumava o seu cabelo todos os dias pela manhã antes de ir para a escola. Havia sempre uma pequena mecha de cabelo ruivo pendurada na testa de Bianca. Ela não sabia explicar como isso acontecia. Mesmo diante das escovadas enérgicas da mãe. Não sabia explicar porque alguns dias queria comer doce logo pela manhã e em outros preferia salgado. Porque se sentia bem umas vezes, e outras, tinha vergonha de dizer o que se passava com ela. Sabia apenas que nunca acordava do mesmo jeito.

Dividia o quarto com sua irmã mais nova. Camila ainda era uma criança bem pequena como bibi, assim chamada em família, já tinha sido. Tinha cinco anos de idade. Aquela época em que as ações ainda são mais por impulso do que por um objetivo claro. Um dia Camila derrubou um vidro inteiro de ketchup nos papéis de carta que bibi guardava no armário a cadeado. O quarto todo estava um horror. Havia marcas de mão pintadas pela parede, alguns borrões, e palavras com uma caligrafia quase inteligível em giz de cera descontínuo. No topo do beliche, onde bibi dormia, algumas roupas emboladas faziam a festa como que felizes por terem invadido um lugar sem serem convidadas.

Quando Irene chegou mais cedo do trabalho numa quarta-feira escaldante e cheia de sacolas, gritou logo o nome de Camila. Como de hábito. Bibi, deveria estar no seu quarto desenhando ou cuidando da caçula. Já não ouvia o seu nome junto com as sacolas fazia bem uns 5 anos. Portanto, não se zangou quando sua mãe perguntou pela menor, ainda esbaforida pelo calor, pelas sacolas, e pelo esforço de parecer bonita mesmo sendo uma executiva, mãe de família. Não achou estranho quando sua mãe deixou as compras escorrerem dos braços magros e bem cuidados, e se espatifarem no piso de azulejos brancos da cozinha. Da cozinha até o quarto das meninas são exatos 15 passos, que pareciam exagerados para aquelas 4 pancadas ligeiras do longo salto no chão de tábuas corridas.

Levou bem uns dez minutos até que Irene voltasse a respirar sem tossir e se certificasse que nada tinha acontecido com a filha menor. Estranhamente não notara a bagunça do lugar, as paredes sujas e as roupas desarrumadas. Estava muito nervosa para isso. Irene não podia ver as coisas fora do lugar. Precisava cuidar de tudo. Ordenava e organizava as tarefas que cada um da casa deveria executar. E, às vezes se culpava pelo seu jeito de militar da reserva com presentes e mimos sem um motivo aparente.

Deu umas sacudidas no vestido de patchoulli com borboletas que estava amassado. Secou o rosto borrado de maquiagem e se levantou do chão meio desajeitada sem fazer muito barulho. Ali, encolhida , indefesa e segurando na barra da saia do próprio vestido, observava Camila de olhos arregalados, agachada, no outro canto,assustada, segurando a barra do short sem entender a cena. Então escorregou para fora do quarto das filhas como um fugitivo arrependido de uma prisão, e se internou no próprio quarto. Horas depois riu um bocado e achou mesmo que estava exagerando com toda aquela estória de ter o controle das situações. Beijou a testa loira da menor, pegou a sacola de ginástica e vôou para a academia. Não se despediu de Bibi. Talvez por medo de ter que explicar todo o ocorrido. E para não perder a autoridade na frente da filha. Ou talvez por saber que a crescida foi sempre quieta, responsável, na dela. E que gostava de ficar no quarto de leituras colorindo os livros e lendo as histórias que o pai buscava para ela na livraria. As vezes adormecia por lá mesmo, arqueada no divã que já não continha o seu corpo. Crescido para algumas coisas e pequeno para muitas como pensava.

Foi somente de noite, que todos deram falta da menina. No caminho para a mesa de jantar, Camila puxou a barra da calça da mãe com os mesmo olhos arregalados de antes. E, sem abrir a boca rosada conduziu-a até o quarto de leituras. A porta estava entreaberta e tudo estava no lugar de antes, como Irene ensinara à mais velha. A pesada porta de madeira foi fechada violentamente sem que notassem ter deixado a menor para trás. Mas o silêncio entretido da filha deu lugar a um estouro de vozes. Uma correria desenfreada pelos corredores largos do apartamento. Alheia a confusão Camila segurava um papel amarrotado e sujo entre os dedos. Olhando para algum ponto no horizonte feito um farol distante. Depois de muitos minutos os pais abriram novamente o quarto de leituras, seguraram a pequena aos prantos e se abraçaram os três. E ficaram assim muito tempo até que o papel encardido caísse de suas mãos direto para o solo revelando uma única frase. “ não fui capaz” Bibi feitosa

8.03.2006

novas diretrizes em tempos de paz

Todos os dias às 4 da manhã, Oliveira de andrade acorda engasgado, se vira da esquerda para a direita, quase sem mover a fronha e sem atingir a sua mulher que dorme um sono sossegado. Respira embargado, toma o lenço azul com listras pela mão suada e fala algo que não chega a sair de sua boca. Pensa estar atrasado para o trabalho. Tenta uma respiração profunda que aprendeu no curso de yoga. Toma um copo dágua até a metade e deita. Demora mais uns quinze minutos até que se acalme o suficiente para que os olhos cansados vençam a queda de braço com o seu coração que palpita, como um soldado convocado a guerra.
Desperta ainda umas outras 4 vezes antes de chegar a hora certa. Em cada uma delas o esforço é o mesmo. Sempre toma o mesmo cuidado em não acordar a mulher, não ter nenhuma atitude estranha ou indigna de um pai de família, e não perder o horário.

Não bastasse isto dorme por vezes com a roupa do trabalho para ganhar tempo nos preparativos e não correr o risco de ficar no trânsito. Já cortou qualquer tipo de alimentação matinal que não venha pronta. Nada de descascar laranjas ou algo batido no liquidificador. Até o costumeiro pão na chapa foi trocado por uma caixa de suco pronto e, um pedaço de bolo ana maria que esconde da mulher e dos filhos no armário acima do refrigerador. Sábio, Oliveira se vangloria do prestígio que adquiriu em 21 anos de profissão sem nunca chegar atrasado, tirar férias itegrais, ou mais de 2 dias por doença.

Era assim desde criança. Essa obsessividade messiânica frente as obrigações sempre foi um traço que o distinguia entre os demais. Carregava inúmeras alcunhas por conta disso. Caxias, digno, honrado, trabalhador, orgulho da família. Mesmo quando os moleques da rua sacaneavam, não dava bola. Sabia que levando uma vida com retidão, seria recompensado. Não dizia , mas na sua figura pálida e empoada, nos seus 1,90 encovados em apenas 60 kilos, na longa franja negra, escondia um prazer secreto, um gozo solitário. Sabia mais que qualquer outro que a sua hora ia chegar. Que os moleques iam ver. Que ele estava certo.

Realmente era difícil discordar. Tinha conseguido um emprego de respeito. Uma mulher de quem não se podia falar muito- nem pro bem ou pro mal- e filhos que mesmo puxando assimm por dizer a "beleza" do pai, tinham um cheiro de criança saudável. Assim como dizia pro seu cunhado - "César, é sim , sáude tem cheiro , tem cor, tem quase registro social. E meus filhos vão muito bem sim". Dava uma vida confortável para a mulher. Que se por um lado não tinha uma vida aventuresca- não , oliveira não era o Indiana Jones, nem o gastão, já que segurava o dinheiro liberando o mínimo para uma vida justa, como dizia- não tinha sobressaltos, dívidas, cobradores, nem apertos financeiros.

Pai e marido aplicado. nota 7,5. Oito com esforço. Não tinha rompantes que o levassem a ser um modelo dos dois.Não era a sua. Era um sujeito comedido. Talvez a sua melhor qualidade. Nunca ficaria em prova final ou de nota vermelha. Assim era no trabalho. Firme. Cumpria sempre o que falava, embora não falasse tanto. Sua previsibilidade era um trunfo. Todos sabiam que oliveira não deixaria ninguém na mão. Todos o conheciam , suas manias e sua ansiedade. Uma vez, convocado às pressas para uma reunião da cúpula diretora da empresa que trabalhava, tropeçou nas escadas e rolou uns 10 degraus até ser socorrido por um segurança. Com muita dificuldade chegou até a sala principal como se nada tivesse acontecido, mãos e testa em bicas, camisa amassada, sem enxeragar um palmo diante dele e com uma das mãos no bolso para que ninguém visse o corte provocado pela lente dos óculos. Ao ser perguntado sobre a sua respiração ofegante dizia ser a última técnica de hatha Yoga para controle da energia vital. Oliveira também sabia mentir, mas só para salvar a sua reputação. Essa reputação de quem tem tudo sobre controle. Quem atravessa o tempo com uma ampulheta nas mãos faz tudo o que tem para fazer, volta e os grãos de areia mal começaram a cair.

Quase no mesmo instante que recebera uma boa promoção no serviço lá no vigésimo terceiro ano. Oliveira Faltou ao serviço sem maiores explicações. Sua ausência foi notada meio ao acaso. Seu chefe queria apresentá-lo a um amigo. Queria mostrá-lo mais como caricatura que era , do que como profissioal competente. Ansiava pelo gaguejo que ora vinha e o jeito meio apreensivo e atordoado de Oliveira para talvez deixá-lo embaraçado na frente do amigo. Em casa ninguém sabia o que se passava. Como de costume leu, tomou um copo de suco pronto e um pedaço de bolo anamaria , pegou o jornal e saiu apressado para o trabalho. Mal tinha feito barulho nas escadas ao descer do quarto. Sua mulher sabia que tinha dormido em casa pelo gel seboso que ficava no travesseiro quando se deitava. Seus filhos ficaram apreensivos quando chegou a noite e o pai não tinha voltado com um pacote de balas para cada um. Uma apreensão muda, amarrada. Sua mulher sem entender o que acontecera dizia que seu marido sabia o que fazer. Que voltaria a qualquer momento. Que sempre fora ele a pessoa a tomar decisões, e que não seria diferente. O marido sabia o que fazia.

Só que os bolos ana-maria e as caixas de suco guardadas no refrigerador foram se acumulando. Sua mulher continuava comprando da mesma maneira de sempre, na sua rotina fria e muda. Seu sofrimento calado era compartilhado pelo seu marido onde quer que tivesse. Tudo na sua casa continuava aparentemente como se nada tivesse acontecido. Mesmo uma semana depois de seu sumiço Iolanda continuava sem procurar o marido. Certa de que ele é que entraria em contao e sabia o que estava fazendo. Cuidava apenas para deixar tudo do jeito que estava quando saiu. Para que satisfizesse aos seus padrões de exigência.

Assim continuou por mais um tempo até que Iolanda começou a ficar preguiçosa o suficiente para seguir sua rotina diária de não fazer nada que mudasse algo. Vivia a maior parte do tempo na cama. E, se permitia dormir no lado do marido e com o seu travesseiro ensebado de gel, que ela mesma cuidava para que continuasse espalhado.

Por isso, quando 1 mês depois a casa foi posta a venda toda a vizinhança se espantou. Iolanda saiu com os filhos sem dizer nada sobre o assunto ou para onde ia. Simplesmente vendeu a casa com tudo o que tinha e desapareceu. O noticiário da televisão avisaria que um homem desaparecido havia 1 mês tinha sido encontrado. Ou o seu corpo. Que havia sido jogado no rio e , estava quase irreconhecivel. Apenas os peritos do IML forma capazes de identificar que se tratava de Oliveira. Tratava-se de um engano. Aparentemente confundiram Olievira com alguém jurado de morte. Seu corpo havia recebido mais de 30 balas e jogado amarrado no fundo do rio da cidade. Devia ter feito algo de bem sério , foi o que o Sargento Ferreira falou a rede local de televisão.

No enterro do corpo no jazigo local estava muita gente conhecida e alguns curiosos. Sua mulher tinha voltado com os filhos e alguns amigos do colégio apresentavam sincera admiração. Oliveira deveria estar pensando.....quem está certo agora?.... Companheiros do trabalho também se reuniam em torno da lápide. Nela estava escrito - a morte não muda nada que em vida não foi possível.

Todos seguiram suas vidas. Iolanda arrumara um ameprego, afinal, precisava cuidar dos filhos e, a pensão do marido só sairia depois de esclarecido os motivos do assassinato. Os seus filhos estavam mais bronzeados por conta da casa de praia que sua mulher tinha ido morar, com a irmã. Os companheiros de trabalho de Oliveira já comemoravam os excelentes resultados de uma fusão bem sucedida da empresa. E, os amigos do colégio não tocavam mais no nome do falecido pois nunca se fala mal de um morto.

Tudo agora continuava como se nunca tivesse sido. Cada qual arrumado , arranjado. De alguma forma. Nada que mudasse a órbita solar ou a direção das estrelas. Embora Oliveira ainda fosse uma lembrança sempre presente na vida de todos. Mas era isso , lembrança. E, vôcê sabe..., lembrança a gente é que escolhe, faz dela o que quiser. O que equivalia dizer que agora teríamos não somente um Oliveira , mas muitos. Um para cada um. Um conforme cada um. Mesmo que não fosse um diamente ou tivesse várias faces.

Alguns anos depois do acontecido a polícia ainda não tinha esclarecido o que acontecera no assassinato. O chefe da delegacia local recebia uma série de correspondências de pessoas que diziam ter pisatas sobre a morte. Inúmeras vezes um suspeito foi anunciado na impressa. Iolanda foi convocada algumas vezes para testemunha e averiguar, mas desistiu assim que percebeu que não estava dando em nada. Entre as diversas correspondências de gente oportunista chegavam cartas de alguém que se intitulava Oscar. Eram cartões-postais de diferentes lugares turísticos com umas pequenas frases. Vinham sempre uma vez por mês. Religiosamente como um comportamento metódico. No dia primeiro de cada mês chegavam. um após o outro. Eram apenas algumas palavras lacônicas. No fim, já no rodapé, havia um muito obrigado por tudo. E a frase - a morte não muda nada que em vida não foi possível.